09 Março 2022
"O grande desafio do governo Boric não é, portanto, acalmar os mercados. Carolina Pérez Dattari, assessora da Convenção Nacional que redigirá a nova constituição, aponta para o verdadeiro desafio: que um dos slogans das revoltas de 2019 se torne realidade: 'O neoliberalismo nasce e morre no Chile'", escreve Bernardo Gutierrez, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, em artigo publicado por Contexto Y Acción e reproduzido por Outras Palavras, 04-03-2022. A tradução é de Rôney Rodrigues.
11 de setembro de 1979. Salvador Allende faz seu discurso de reeleição para uma multidão aguerrida. Depois de abortar o golpe de 1973, o Chile se coloca como uma terceira via, distante tanto do capitalismo quanto da “ditadura do proletariado”. Em seu discurso, Allende elogia a era cibernética inaugurada pelo Synco (Sistema de Informação e Controle), tecnologia que combina dados e coordena a produção do país. Muitas delegações da América Latina estão em Santiago do Chile para estudar como replicar a Synco em seus países. O ciber-bolivarismo parece o caminho para um futuro brilhante ao continente.
O romance SYNCO, de Jorge Baradit, especula o que teria acontecido se o golpe de Estado de 1973 tivesse fracassado no Chile. Com seus cabos telefônicos que afundam “na terra como uma aorta de plástico”, o Synco do romance transforma o Chile em “um organismo harmônico”. A informação flui através de telas, terminais, artefatos. Tudo está conectado. O verdadeiro Synco foi um projeto dirigido por Stafford Beer para tentar coordenar a produção das empresas que Allende havia nacionalizado. Combinando máquinas de telex, um computador central monitorava a produção em tempo real. Graças ao aplicativo Cibernet da Synco, o governo contornou o caos causado por uma greve de caminhoneiros.
O centro de operações era a sala Opsroom, que tinha cara de filme de ficção científica: telas com dados, cadeiras giratórias com botões nas laterais, almofadas alaranjadas. As imagens do Opsroom alimentaram a lenda da cibernética chilena. Em 2016, o Chile chegou a encenar uma reprodução do Opsroom (The Counterculture Room) na Bienal de Design de Londres, que comemorava o quinto centenário do livro Utopia de Thomas More. O que, então teria acontecido no Chile se Allende continuasse governando? O neoliberalismo como o conhecemos existiria?
O pesquisador Eden Medina explica em seu livro que quando os militares golpistas entraram na Opsroom, em 1973, perguntam: “isso aqui está sendo usado para controlar o país?”. Pouco depois, eles destruíram a sala. A breve era Allende foi encerrada. O sonho cibernético, interrompido. O Ciberfolk, o dispositivo que permitiria às pessoas opinarem sobre o governo de suas casas, nunca foi instalado. E o Chile tornou-se o laboratório neoliberal global.
A chegada à presidência de Gabriel Boric marca o fim de um ciclo que pode ter sido apenas um longo parêntese. Repara o curto-circuito que Pinochet causou na imaginação política chilena. E abre uma janela histórica de oportunidade. Na primeira vez que visitei Santiago do Chile, em 2006, a efervescência da Revolução dos Pinguins dos alunos do ensino médio ainda estava no ar. Os muros uivavam contra a privatização da educação (e da vida). Fiquei imerso em um turbilhão de entrevistas em Santiago e Valparaíso: líderes estudantis, uma mulher trans se preparando para ser vereadora, adolescentes queer, roqueiras com olheiras que pareciam maquiadas com pólvora, emos, poetas de roupas góticas, anarquistas, hackers, indígenas cultivando nas periferias. Ouvi concertos de punk num sótão quase desmoronando e senti a terra tremer. Algo estava sacudindo o Chile. Acabei perdendo meu caderno de anotações e sai do jornal onde trabalhava. Nunca publiquei aquela reportagem. Depois do insurgente 2011, em alguns encontros internacionais, encontrei-me com estudantes chilenos que nos explicaram a velha-nova revolta contra a privatização da vida (e da educação). Os indignados do mundo levantavam as mãos e proclamavam a não-violência. Os revoltados chilenos de 2011 montaram barricadas nas escolas.
Em 2014, voltei ao Chile para participar de um encontro na cidade de Santiago. Fomos recebidos por Giorgio Jackson, um dos líderes estudantis que se tornaram deputados (os outros eram Gabriel Boric e Camila Vallejo), com quem articulamos a Rede Latino-Americana de Inovação Política. Quando a insurgência chilena eclodiu em outubro de 2019, eu lia fascinado sobre a insurreição enquanto me perguntava o que os protagonistas do meu caderninho perdido estavam fazendo. A imaginação chilena já tomava a forma de um furacão: vimos manifestantes com lasers atacando a polícia, mapuches derrubando estátuas, brigadas populares encarregadas de alimentação e saúde nas periferias, mercadinhos que se recusavam a vender comida aos pacos (policiais), Las Tesis criando uma coreografia planetária, frases-lemas-imaginários exportados, “o estuprador é você”, “a normalidade era o problema”, escudos de rua com a sigla A.C.A.B. (“All cops are bastards”) que nasceu há um século na Inglaterra das greves.
O pingüinazo de 2006 era o sintoma de um mal-estar mais profundo. O Estado chileno abandonou a maioria da população nos últimos quarenta anos. E, em meio ao mercado livre para todos, as pessoas começaram a se auto-organizar. A bela história do coletivo Vitrina Dystópica retrata como a luta contra a privatização total da vida criou as protoinstituições do futuro: bairros reinventados com assembleias territoriais, cooperativas de abastecimento que compram diretamente dos produtores, movimentos como No+AFP para garantir aposentadorias para trabalhadores precários sem sindicato, outra relação com a terra e a água (Movimento de Defesa da Água, Terra e Meio Ambiente, Modatima), coordenadoras populares para quase todas as áreas.
O grande desafio de Gabriel Boric não é apenas acalmar os mercados, como aponta a mídia, mas desmercantilizar a vida e possibilitar o bem-estar da maioria. Para os jovens das periferias urbanas, como aponta Vitrina Dystópica, a representação tradicional não existe. Para eles não há parlamento, não há polícia, não há sindicatos, não há Frente Ampla. Há apenas coordenadoras. Redes de apoio mútuo. Outros tipos de instituições: comunitárias, autônomas, anticapitalistas. Sistemas vivos de autoprodução regidos pela autopoiese, conceito cunhado por Humberto Maturana e Francisco Varela em De máquinas e seres vivos, publicado em 1972, ano dourado allendiano. Com autopoiese, queremos dizer: a qualidade de um sistema (molecular, social) capaz de se reproduzir e se manter.
Como a imaginação política se desdobrará na era Boric? Que dispositivo sociotécnico poderia desempenhar o papel da Synco? No romance de Jorge Baradit – que também desenha traços obscuros do ciberbolivarismo –, Salvador Allende contrata poetas e crianças para desenhar campos de energia solar. E cria o Instituto de Tradição Mapu Kimun-ngülam para canalizar a sabedoria dos povos originários e investigar as forças mágicas e curativas da ancestralidade. Chile, uma república socialista mágica completa.
Boric tem o desafio de garantir os direitos sequestrados após décadas de neoliberalismo, mas deve tentar ir além. Tem a oportunidade de resgatar o imaginário governamental chileno interrompido por Pinochet e combiná-lo com o imaginário tecido pela sociedade civil. É urgente colocar a vida no centro. Redistribuir riqueza com políticas públicas, sem prejudicar as protoinstituições autônomas que surgiram. Combinar a proteção do público com os bens comuns. Boric tem em mãos experiências inspiradoras na América Latina. Para citar alguns: as governanças indígenas que existem em Tijuana e Ushuaia; visões cosmopolíticas que tentam desacelerar a razão e desfazer o feitiço do capitalismo; a inovação cultural do Brasil da era Lula e da cultura viva e comunitária; o projeto equatoriano Buen Conocer, que apostava no conhecimento livre e sem patentes…
O Chile volta a ser um laboratório. E poderia muito bem sincronizar hits de experiências de diferentes épocas e regiões do mundo: conquistas das social-democracias do Norte, as políticas públicas do ciclo municipalista espanhol, elementos do Bem Viver cozinhado na Bolívia e no Equador, as fábricas argentinas recuperadas ou o cooperativismo de plataforma que se alastra pelo mundo… Se quando deputado Giorgio Jackson já enfrentava o capitalismo de plataforma com projetos como #MiJefeEsUnaAPP, o que ele poderá fazer agora que é secretário-geral da Presidência?
O grande desafio do governo Boric não é, portanto, acalmar os mercados. Carolina Pérez Dattari, assessora da Convenção Nacional que redigirá a nova constituição, aponta para o verdadeiro desafio: que um dos slogans das revoltas de 2019 se torne realidade: “O neoliberalismo nasce e morre no Chile”.
11 de setembro de 1979. Salvador Allende faz seu discurso de reeleição para uma multidão aguerrida. Depois de abortar o golpe de 1973, o Chile se coloca como uma terceira via, distante tanto do capitalismo quanto da “ditadura do proletariado”. Allende elogia a era cibernética…
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No Chile, Boric encara seu maior desafio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU